quarta-feira, 2 de março de 2011

Curiosidades - A Ciência do Palavrão (Parte II)

É o que pensa o psicólogo cognitivo Steven Pinker, da Universidade Harvard. Em seu livro mais recente, Stuff of Thought (Coisas do Pensamento, inédito em português), ele escreveu: Mais do que qualquer outra forma de linguagem, xingar recruta nossas faculdades de expressão ao máximo: o poder de combinação da sintaxe; a força evocativa da metáfora e a carga emocional das nossas atitudes, tanto as pensadas quanto impensadas. Traduzindo: palavrões são f*. Tão f* que nem os usamos só para xingar. Eles expressam qualquer emoção indizível, seja ruim, seja boa. Então, se um jogador de futebol grita palavrões depois de marcar um gol, ele não o faz por ser maleducado, mas porque só uma palavra saída direto do sistema límbico consegue transmitir o que ele está sentindo.

Outra prova de eficácia é que eles estreitam nossos laços sociais. Se você xingar alguém gratuitamente e o sujeito não ficar bravo, significa que ele é seu amigo. Daí que grupos de homens adoram usar cumprimentos como Fala, cuzão! Isso deixa claro que todos ali são íntimos. Perceber o xingamento como agressão ou ferramenta social depende do contexto, disse o psicólogo Timothy Jay, da Faculdade de Artes Liberais de Massachusetts, para a revista americana New Scientist. Num vestiário masculino, por exemplo, quem não xinga é o panaca.

Timothy Jay sabe do que está falando. É um expert em palavrões. Ele passou as últimas 3 décadas anotando as sujeiras que ouvia em lugares públicos. Juntou mais de 10 mil ocorrências. E colocou em números cientificamente rigorosos (na medida do possível) aquilo que você já sabia: foda e merda (ou fuck e shit) correspondem à metade de todos os palavrões ditos (em inglês) sem contar suas variantes.

Não é à toa. Como os palavrões nascem na parte primitiva do cérebro, quase todos versam sobre as duas coisas mais básicas da existência:

Veja só. Merda é um palavrão mais ofensivo que mijo, por sua vez mais pesado que cuspe, que nem palavrão é. Se você fosse excretar alguma dessas coisas na rua, essa também seria a ordem de impacto nas outras pessoas do mais para o menos chocante. Coincidência? Não. Não é por acaso que as substâncias que mais dão nojo também sejam vetores de doenças. A reação de repulsa à palavra é o desejo de não tocar ou comer a coisa, afirma o médico americano Val Curtis no livro Is Hygiene in Our Genes? (A Higiene Está nos Nossos Genes?, sem tradução para português).

Se é fácil entender por que excrescências são palavrões, não dá para dizer o mesmo sobre os termos ligados ao sexo. Afinal, sexo é bom, não? Não necessariamente. Ele traz altos riscos, incluindo doenças, exploração, pedofilia e estupro. Esses males deixaram marcas nos nossos costumes e emoções, diz Pinker. Foquemos em estupro. Do ponto de vista evolutivo, ele foi vantajoso para os homens. Pegar mulheres à força permitia que um macho fizesse dezenas, centenas de filhos, coisa que contou pontos no jogo da evolução. Já para as mulheres isso é o inferno. O papel delas é ter poucos, e bons, filhos. Então selecionar o pai é fundamental, e engravidar de alguém que a violentou, um baita prejuízo.

Daí foi natural que a expressão foder alguém virasse sinônimo de fazer um grande mal. Para entender isso melhor, complete a frase João ___ Maria para mostrar que eles transaram, usando apenas uma palavra. Quase todas as opções para preencher a lacuna são palavrões. Já os termos leves para relação sexual sempre carregam a preposição com: você pode dizer que João fez amor com Maria, dormiu com, fez sexo com, transou com... Todos os exemplos indicam que João e Maria participaram do sexo de igual para igual.

Com os palavrões, a história é outra. Eles deixam claro: Maria está sempre numa posição inferior. Note que a origem de fodido e seus equivalente não envolve o sexo apenas como uma ferramenta de submissão de homens contra mulheres. Mas de homens contra homens também. O estupro homossexual sempre foi, e segue sendo, uma forma eficaz de deixar claro num bando de machos quem é o chefe a violência sexual dentro dos presídios está aí para provar. A coisa é tão arraigada que até uma palavra inocente hoje, como coitado ou tadinho, sua variante mais fofa, significa aquele que sofreu o coito. Mas espera aí: como algo tão barra-pesada vira uma palavra até bonitinha? É o que vamos ver.

Que se dane!, diabos ou vá para o inferno já foi algo mais impactante. Claro: até décadas atrás não havia prognóstico pior que não ir para o céu quando morresse. Então, quando a idéia era insultar para valer, nada melhor que mandar alguém para o inferno. A perda de eficácia das palavras tabus relacionadas à religião é uma óbvia conseqüência da secularização da cultura ocidental, afirma Pinker.

Outra: quando a palavra câncer era sinônimo de morte, também não podia ser dita livremente. Nos obituários, a pessoa não morria de câncer, mas de uma longa enfermidade. Com os avanços no tratamento, a coisa mudou de figura, e câncer, apesar de ainda dar calafrios, virou uma palavra bem mais corriqueira.

As doenças em geral, na verdade, passaram por um processo parecido. Em Romeu e Julieta, de Shakespeare, por exemplo, há uma passagem dizendo: Que a peste invada as casas de ambos! Uma baita ofensa no século 16, quando a peste bubônica ainda era uma ameaça na Europa. Mas agora, no mundo limpo e cheio de antibióticos que a gente conhece, o xingamento shakespeariano parece inócuo.

E também há o inverso: palavras normais que viram tabu. Em algum momento da história do português um sujeito chamou pênis de pau. E uma palavra originalmente pura enveredava para o mau caminho. Nada mais comum: hoje ninguém se lembra mais de caralho como sendo a cestinha que ficava no alto do mastro dos navios, ou boceta como uma caixa pequena e redonda. A palavra vira tabu quando ganha um sentido simbólico, afirma o etimólogo Deonísio da Silva, da Universidade Estácio de Sá.

Mais uma mostra de como os palavrões flutuam com o espírito do tempo são as expressões que são tabu num lugar e não têm nada de mais em outro. Se você for a Portugal, vai ver que eles preferem cu e rabo para referirem-se às nádegas, e que coram quando alguém fala broche (o termo sujo para sexo oral).

Mas quem decide o que é palavrão e o que não é? Isso depende dos mecanismos de conservação da língua, que são o ensino, os meios de comunicação e os dicionários. As palavras relacionadas a sexo que não são palavrões são quase todas da literatura científica, como pênis e ânus, explica a lingüista Wânia de Aragão, da Universidade de Brasília. Não que isso impeça termos científicos de hoje, como pedófilo, de virar palavra suja um dia. A palavra esquizofrênico, por exemplo, nasceu na ciência, mas agora, com o aumento dos dignósticos de doenças mentais, caiu na boca do povo. E está virando xingamento.

Mas saber quais serão os palavrões do futuro é tão impossível quanto prever o futuro da tecnologia, da humanidade ou do Corinthians. O escritor e comediante inglês Douglas Adams, resumiu isso bem no clássico O Guia do Mochileiro das Galáxias. O livro diz que o palavrão mais sujo entre os habitantes dos outros planetas da Via Láctea é uma expressão bem conhecida dos terráqueos: bélgica.

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